A vida é tão simples que ninguém a entende
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Solidão
Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso
Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio
É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou
Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna
Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo
Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
Com um tripé de certeza que sairia mais nítida e sem tanto ruido... mas será que ela se deixava apanhar?
Burgos
Agosto de 2013
Jorge Soares
Cada um descobre o seu anjo tendo um caso com o demônio.
Mia Couto
Catedral de Notre Dame
Paris, França
Agosto de 2013
Jorge Soares
O bom do caminho
é haver volta.
Para ida sem vinda,
basta o tempo.
Mia Couto
A pedra das muralhas
Sortelha, Sabugal
Dezembro de 2012
Jorge Soares
Demoro-me no outro lado de mim
porque me atrai
esse ser impossível
que sou
esse ser que me nega
para que seja ainda eu
Porque desejo esse alguém
que me invade e me ocupa
que me usurpou a palavra e o gesto
me fez estrangeiro do meu corpo
e me deixou mudo, contemplando-me.
Lanço-me na procura da minha pedra
no infindável trabalho
de me reconstruir
recolhendo os sinais do meu desaparecimento
percorrendo o revés da viagem
para regressar a um lugar inabitável.
Todas as vezes que me venci
não me separei do meu sonho derrotado
e, assim, me fiz nuvem
reparti-me em infinitas gotas
para que fosse bebido, vertido, transpirado
e voltasse de novo a ser céu
transparência de azul, harmonia perfeita
e poder regressar ao lugar interior
para me deitar, de novo,
no sangue que me iniciou.
Mia Couto
Parque Urbano de Albarquel
Setúbal, Setembro de 2012
Jorge Soares
Desiguais as contas:
para cada anjo, dois demónios.
Para um só Sol, quatro Luas.
Para a tua boca, todas as vidas.
Mulher passeia na areia molhada da Praia do Meco
Sesimbra, Julho de 2012
Jorge Soares
As Ruas
No tempo
em que havia ruas,
ao fim da tarde
minha mãe nos convocava:
Farol do Cabo São Vicente
Sagres
Julho de 2012
Jorge Soares
Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia
pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia
Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser
Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo
Nas margens do Rio Eo num dia de verão nas Astúrias
Identidade
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
Faro de Busto
Luarca, Astúrias, Espanha
Agosto de 2011