Ter [na ausência das marés]
Tenho frio. Tendo um copo de vinho que se esvazia na gula dos dedos boquiabertos. Tenho sede. Embriago-me na tristeza liquefeita da vinha. Na ira da raiz. Esfrego as mãos nas parras que se despedaçam na terra. Tenho o enjoo encostado a mim. Que me atravessa em pontos determinados. No alvoroço das marés. Remo no silêncio sossegado da baixa-mar. No instante em que o horizonte é lugar no longe. No nada. Na efeméride calada. Tenho olhos de vidro. Escaqueirados no areal. Lá, onde os copos não existem e os vinhos não transportam alegrias de entoar.
Vai-te, flutuante casa da memória. A minha ferida segue à bolina na doce espuma do desgosto. Enfeitada com vozes afónicas. Tenho a noite. Que é mais segura sem ti. De dia, sobram-me roncos dos barcos vazios. Esburacados. Rombos nas mãos que ainda tenho. Na sede da água que se foi com a maré… Outra vez a casa. A casa deles não vem com o mar. Tenho a memória dos pardais que trinavam no telhado. A ver aqueles barcos que já não podem naufragar.
Sou barca atracada na quietude do desabrigo. Tenho uma mansa planície de papoilas azuis no sangue. Ardo na língua do Sol. E o barco segue, como se a foz o não tivesse afogado. Como se as amarras detivessem o vendaval. O homem do barco a remos desligou o motor. E as barcas persistem no seu carregar. Não tenho. Mas as gaivotas caçam o equívoco da abundância…